Após um mês de mobilização em frente ao DSEI Leste/RR, o Movimento Indígena de Roraima encerra o ato com planejamento e estratégias voltadas para o bem viver dos povos indígenas.
Durante 30 dias, lideranças tradicionais, jovens, crianças e representantes dos povos indígenas das regiões Amajari, Alto Cauamé, Baixo Cotingo, Murupu, Sumuru, Raposa, Serras, Serra da Lua, Tabaio, Waiwai e Alto Miang estiveram reunidos em uma mobilização pacífica, exigindo explicações do Ministério da Saúde sobre a não nomeação de Letícia Monteiro como coordenadora do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI Leste Roraima).
Desconsiderando a indicação do Movimento Indígena de Roraima, feita durante o V Acampamento Terra Livre Roraima (https://www.cir.org.br/post/v-atl-rr-primeira-mulher-indigena-e-nomeada-coordenadora-do-dsei-leste-em-roraima-a-nomeacao-representa-conquista-para-o-movimento-indigena-do-estado), o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, nomeou Lindinalva Marques para o cargo. A portaria com o nome de Letícia foi divulgada no dia 16 de maio e, em uma cerimônia simbólica, Letícia foi empossada pelo movimento indígena, mas a publicação oficial no Diário Oficial da União (DOU) nunca ocorreu.
A situação gerou um impasse que se prolongou por 30 dias. O movimento esteve em mobilização em frente à sede do órgão. Mesmo com incidências de lideranças em Brasília e sob forte pressão do movimento, nenhuma resposta concreta foi apresentada sobre o fato.
As lideranças indígenas denunciam interferência política na nomeação da atual coordenação, apontando que Lindinalva tem apoio do partido Republicanos. A situação se agravou quando a nova coordenadora imposta passou a visitar comunidades indígenas acompanhada de políticos, como o deputado federal Gabriel Mota, conhecido por sua atuação contrária aos direitos indígenas, como o apoio ao Marco Temporal e à legalização do garimpo em terras indígenas. A presença do parlamentar em agendas oficiais do DSEI escancara o vínculo político que os apoiadores da nomeação insistiam em negar, enfraquecendo ainda mais a justificativa institucional para a decisão. As lideranças repudiam a interferência política e destacam a importância da escolha do movimento para garantir uma gestão que realmente represente e atenda às necessidades, respeitando a particularidade de cada local e povo.

"Estamos aqui por nossos direitos, pela saúde indígena e pela decisão coletiva que nos foi negada. Não aceitamos que o DSEI seja usado como jogada política, pois é o que está acontecendo escancaradamente. Alerto que 2026 é período de eleição", destacou uma das lideranças.
O movimento denunciou não apenas a nomeação em si, mas a sistemática desconsideração da participação indígena nos processos que afetam diretamente suas vidas, feita sem consulta prévia, livre e informada, violando diretamente a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Constituição Federal e as Diretrizes de Gestão da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas.
A mobilização cumpriu seu papel de denúncia, de mobilização e de fortalecimento da luta. "Seguiremos atentos e preparados para as próximas etapas. Voltar ao território não é recuar, e sim reorganizar-nos, nos preparando para as próximas etapas", reforçou o coordenador regional do Alto Miang, Ulisses Taurepang.
Durante a mobilização, foram realizadas rodas de conversa, oficinas, rituais, cantos e danças tradicionais, troca de saberes pelas lideranças tradicionais e articulações políticas, reafirmando o protagonismo e o direito à autodeterminação dos povos indígenas.
O movimento indígena segue cobrando providências, articulando e fortalecendo sua base nos territórios, com a certeza de que a luta e a resistência também se constroem com sabedoria e estratégia.
A luta continua
O movimento indígena encerrou a mobilização com a finalidade de planejar estratégias para enfrentar os retrocessos e ataques aos direitos indígenas, entre eles, a criação da Câmara de Conciliação, pelo ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, em abril de 2024, para discutir a Lei do Marco Temporal (Lei 14.701/23), referente à demarcação de terras indígenas.
Entre agosto de 2024 e junho de 2025, foram realizadas 23 audiências de conciliação. Algumas delas foram acompanhadas por lideranças de Roraima, em meio à mobilização no V ATL/RR e pela saúde indígena.
Para as lideranças indígenas, a Câmara de Conciliação representa uma tentativa de negociar direitos garantidos constitucionalmente, o que é inaceitável. Esse posicionamento foi reforçado pela retirada da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) da mesa de conciliação em agosto de 2024.

Conforme explicou a advogada indígena Fernanda Felix, a mesa retrocede os direitos indígenas e a expectativa é que ela seja considerada inconstitucional pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).
"A Lei 14.701, conhecida como a Lei do Genocídio Indígena, impõe obstáculos à demarcação de terras e ameaça direitos garantidos pela Constituição de 1988. A criação da Câmara de Conciliação foi uma manobra institucional para tentar negociar o inegociável: nossos direitos. A APIB se retirou da mesa porque ela é ilegal, injusta e inconstitucional. Mesmo sem a representação indígena, os debates seguiram de forma desrespeitosa. Esperamos que o STF declare a inconstitucionalidade dessa lei e de todos os seus desdobramentos", destacou Fernanda.
Histórico de luta do Movimento Indígena pela criação do DSEI Leste/RR
O Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI Leste/RR), criado na década de 1990, é resultado da reivindicação do Movimento Indígena de Roraima. Mas, para conquistar o espaço, foram anos e anos de lutas e mobilizações sob sol e chuva.
Lideranças como Clovis Ambrósio, que dedicou mais de 40 anos à área da saúde indígena, estiveram na linha de frente dessa conquista. Ele presidiu o Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi) Leste de Roraima por mais de uma década.

Além das lideranças como Clovis Ambrósio, Valdir Tobias, Nelino Galé e Dionito Macuxi, que desempenharam papéis fundamentais, esteve lado a lado na batalha o Conselho Indígena de Roraima (CIR), que carrega o legado atuando há 54 anos em defesa da vida e dos direitos indígenas no estado.
Desde a criação do DSEI Leste/RR, a organização atuou na linha de frente para que os serviços e profissionais se consolidassem. Uma missão árdua, repleta de desafios, mas, principalmente, da união dos povos indígenas de Roraima.
As lideranças indígenas sempre trataram as questões de saúde de forma indissociável da luta territorial, com um lema que expressa bem essa relação: "sem terra, não há saúde". A partir desse entendimento, foram sendo construídas estratégias para que os próprios indígenas assumissem o protagonismo na gestão da saúde, ocupando espaços de decisão e cargos estratégicos dentro dos órgãos públicos.
A criação do DSEI Leste/RR representa, portanto, não apenas uma conquista institucional, mas o símbolo da resistência e da autodeterminação dos povos indígenas de Roraima.